No fim do ano passado, sugeri a um empresário que havia sido eleito deputado federal em outubro de 2022 e tomaria posse do mandato meses à frente, uma linha de atuação parlamentar. Ele tem a vida pessoal estabelecida, é amigo do presidente Lula e dizia não ter a pretensão nem de virar ministro, nem de alavancar uma carreira executiva em seu estado.
– Você deve fazer, então, um mandato de alto impacto político – disse e prossegui: – Apresente uma Proposta de Emenda Constitucional alterando a competência constitucional exclusiva do procurador-geral da República para apresentar denúncia por crimes comuns contra o presidente da República. É preciso fazer com que a PGR divida essa responsabilidade com um órgão colegiado. E também é preciso dar prazo e estabelecer critérios para que presidentes da Câmara respondam aos pedidos de abertura de processos de impeachment contra presidentes da República. Senão, sempre correremos o risco de um novo Eduardo Cunha emparedar outra Dilma Rousseff com denúncias fabricadas. Os presidentes da República não devem deixar o mandato por 180 dias, quando a Câmara autoriza a instauração do processo, pois isso já se torna o “impeachment sob vaticínio”. Os senadores não procedem a um julgamento técnico. Então, no Brasil, uma vez aprovada a abertura do processo pela Câmara, o eleito para a Presidência por voto popular sofrerá sempre o impeachment, pois o julgamento não é jurídico e a carência de provas não altera o veredito. É péssimo para o País ficar sob a ameaça eterna de hábeis (e, muitas vezes, desonestos) chefes do poder parlamentar. É necessário dissipar as nuvens de chantagens que podem ser feitas contra o chefe do Executivo federal – propus, explicando didaticamente cada ponto.
O empresário que viraria deputado e seu filho, já um adulto criado e também mergulhado no mundo empresarial, escutou com razoável atenção e redarguiu:
– E o que eu ganho com isso? Por que faria isso?
Não esperava um aceite imediato à minha ideia. Mas, tampouco imaginava que viria tal indagação, tão pragmática.– Como ganhar? O que você espera ganhar? O País conseguiu superar uma tragédia que foi o impeachment sem crime de responsabilidade de Dilma, seguido de uma loucura fascista que foram esses quatro anos de Bolsonaro, você estará na Câmara numa quadra em que o Poder Legislativo é chefiado por meio de chantagens, e precisa receber algo em troca para propor o início de uma Reforma Política disciplinadora para o País?
– Vocês, jornalistas, são sonhadores... – entrou na conversa o herdeiro do político. Deu sequência ao raciocínio: – Se ele (apontou para o pai) vai fazer um gesto dessa dimensão para o presidente, para o Governo, para o PT, precisa saber o que receberá em volta.
Evidenciei meu ar de incredulidade e decepção, sobretudo porque o detentor do mandato futuro balançava a cabeça em consonância com os argumentos do filho. Tratei de pedir um copo d’água, alarguei o sorriso, dei uma desculpa, levantei e saí carregando em trapos contorcidos o fio de esperança que levara para o bate-papo possivelmente promissor. O personagem dessa história atravessou o primeiro ano da Legislatura que se dá sob o terceiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva como presidente da República, patinando na nata do ostracismo. O nome dele não foi citado em nada relevante, não relatou projeto algum peso, desapareceu da articulação política e vê definharem os laços de amizade que um dia o conectaram com integrantes da casta palaciana. Contudo, o Brasil segue precisando de uma Reforma Política eficaz, profunda e corajosa ou os cupins do cerrado do Planalto Central, famosos por sua voracidade, desmontam nossas estruturas republicanas.
Esqueça-se a convocação de uma nova Assembleia Nacional Constituinte. A Carta de 1988, perfeita até ao reconhecer suas imperfeições e estabelecer procedimentos razoavelmente simples na busca de melhorias que a modernizem pela forma de emendas, foi fruto da ebulição de sonhos e projetos de um País onde os valores democráticos surgiam em espiral ascendente na sociedade. Agora, esses mesmos valores democráticos derretem como lava vulcânica escorrendo em direção a um vale mortífero no qual estamos aprisionados todos nós: de um lado, o melting pot derramando os rejeitos vulcânicos. Do outro, cresce o paredão pedregoso de uma sociedade devastada por uma guerra de costumes tão perigosa quanto estéril do ponto de vista de nos oferecer saídas. Uma “Constituinte reduzida”, como já se chegou a falar há alguns anos, também não funcionaria por ser pleonasticamente inconstitucional. Tem-se, então, de confrontar o status quo estabelecido por Arthur Lira na Câmara dos Deputados, ele que se arvora a devorar nacos do poder Executivo de forma cada vez mais anti-republicana, e a parvoíce esperta de Rodrigo Pacheco no Senado. Posando de jurista de quermesse católica, Pacheco sabe manobrar a pauta do Senado e do Congresso para fazer valer o micropoder da cadeira na qual senta. O poder, ali, é micro em razão da forma como desqualificados o exercem. Porém, vira gigantesco quando os resultados se voltam contra os cidadãos e contra o próprio Governo de plantão.
Além das mudanças constitucionais e infraconstitucionais necessárias para adaptar nossa legislação àquilo que foi proposto e ignorado ao deputado e empresário cujos ouvidos de mercador saem institucionalmente caros à Nação, o que deve constar de uma Reforma Política redentora para a prática política brasileira:
O fim da reeleição, como irá propor o jurista de quermesse Rodrigo Pacheco em fevereiro de 2024, quando o Congresso voltar a trabalhar, não é panaceia para curar os males da democracia nacional. Se puserem fim à reeleição e, além disso, aprovarem uma desastrosa coincidência de mandatos – fazendo com que de Presidente da República a vereadores dos confins do Rio Grande todos os mandatos sejam de cinco anos e todos sejam eleitos no mesmo dia – fará da emenda uma bomba atômica política capaz de destruir nossa arquitetura democrática. O Brasil e os brasileiros não precisam de menos eleições; mas, ouso dizer, de mais eleições. De mais pleitos. De mais oportunidades para verem suas vontades e seus anseios expressos em sufrágios.
Por duas vezes, em 1963 e em 1992, além de termos nos pronunciado no curso do processo constituinte por meio do poder delegado aos deputados e senadores daquela Assembleia Nacional, nós rejeitamos a instituição do Parlamentarismo como sistema de Governo. Exercendo o poder de forma indevida, discricionária e atentatória aos princípios ansiados pela Carta de 1988, Arthur Lira tenta impor o Parlamentarismo a fórceps contra o Governo Federal. É preciso detê-lo. Ele seduziu seu vizinho de Casa, Rodrigo Pacheco, e o barracão da quermesse foi montado no Senado: é hora de demolir isso. Já.