Na quarta-feira (11), a emissora britânica BBC, considerada a maior rede de comunicação pública do planeta, emitiu um comunicado explicando os motivos pelos quais, em seus noticiários, não classifica o Hamas como “organização terrorista”, prática adotada pela maior parte da imprensa ocidental (incluindo a brasileira).
Alegando o princípio da imparcialidade, o editor de Assuntos Mundiais da BBC, John Simpson, afirma que “terrorismo é uma palavra carregada, que as pessoas usam para se referir a uma organização que desaprovam moralmente. Não é função da BBC dizer às pessoas quem apoiar e quem condenar – quem são os mocinhos e quem são os bandidos”. Portanto, cabe ao público fazer adjetivações e/ou tomar suas próprias decisões sobre os diferentes atores geopolíticos.
Evidentemente, não estou negligenciando a histórica relação entre BBC e o imperialismo do Reino Unido. Porém, é preciso ressaltar a importância discursiva dessa linha editorial adotada pela emissora na cobertura da geopolítica palestina. Um jornalismo minimamente ético, honesto, independente e objetivo não deve fazer juízo de valores sobre os fatos. Como bem pontuou Simpson: “Governos britânicos e outros condenaram o Hamas como uma organização terrorista, mas isso é problema deles”.
Além do mais, referir-se ao Hamas como “terrorista” não é apenas questão de posicionamento ideológico; é um erro semântico. Concordemos ou não com suas ações, o Hamas foi escolhido como legítimo representante político pelo povo palestino em Gaza. Logo, seguindo a própria definição de “terrorismo” do Centro Nacional Contra o Terrorismo (órgão ligado ao governo estadunidense), não cabe ao grupo um termo utilizado para rotular as ações premeditadas e perpetradas por organizações subnacionais ou agentes clandestinos (como Al-Qaeda e Estado Islâmico).
Diferentemente da BBC, que em seus noticiários sobre a geopolítica palestina corretamente decidiu por não classificar o Hamas como terrorista, se preocupando em apresentar os fatos ao público e deixá-los tomar suas próprias decisões; na grande imprensa brasileira, tal prática editorial, infelizmente, não é registrada.
Pelo contrário, remetendo às palavras do saudoso jornalista Alberto Dines, fundador do Observatório da Imprensa, no Brasil, os principais veículos de comunicação transformam meras reportagens em verdadeiros editoriais. Ou seja, coberturas jornalísticas que deveriam se limitar apenas à transmissão de informações ou a relatos dos fatos, na Folha de São Paulo, Veja ou Estadão, tornam-se mecanismos para escoar uma determinada agenda política.
Desse modo, o jornalismo de adjetivação (denunciado no informe da BBC) é uma marca registrada da imprensa brasileira. E estas “adjetivações”, via de regra, seguem os interesses das políticas externas das grandes potências.
Nicolás Maduro e Daniel Ortega, respectivamente presidentes da Venezuela e Nicarágua, países considerados hostis aos interesses imperialistas dos Estados Unidos na América Latina, são rotulados nos principais jornais, revistas de circulação nacional e emissoras de televisão como “ditadores”.
Se Maduro e Ortega foram eleitos e reeleitos, em processos eleitorais dentro das normas constitucionais e com a garantia de direito a voto para todos os cidadãos maiores de idade, indistintamente, isso é o que menos importa. Na mídia brasileira, se um presidente é aliado dos Estados Unidos e de outras potências imperialistas, automaticamente, é “democrata”; caso demonstre o mínimo de obstáculo aos interesses de Washington, logo é “ditador”.
Não por acaso, recentemente, articulistas dos principais grupos de comunicação do país protagonizaram múltiplos chiliques quando Lula disse que o conceito de democracia é relativo. A carapuça serviu!
Outro termo presente no jornalismo de adjetivação da imprensa brasileira é “regime”. Rotular um determinado governo ou sistema político como “regime” traz uma carga semântica negativa muito forte, que remete às ideias de autoritarismo, desrespeito aos direitos humanos ou ausência de liberdades individuais. Nesse sentido, “regime” é utilizada pela mídia ao se referir a países considerados inimigos das potências ocidentais, como Venezuela, Síria e Irã.
Ironicamente, no Manual de Redação do jornal O Estado de São Paulo, encontramos a seguinte recomendação: “O texto noticioso deve limitar-se aos adjetivos que definam um fato, evitando aqueles que envolvam avaliação ou encerrem carga elevada de subjetividade. Mesmo nas matérias opinativas, em que o autor tem maior necessidade de recorrer aos adjetivos, a parcimônia é boa conselheira [...] Em qualquer tipo de texto, porém, tome cuidado com os "adjetivos fortes": eles seguramente surpreenderão o leitor, no mau sentido, ou lhe darão a ideia de que alguém tenta impingir-lhe opiniões definitivas sobre algo ou alguém”.
No entanto, ao acessarmos o site do jornal da família Mesquita, encontramos manchetes como “Resposta do governo Lula a atentados terroristas do Hamas expõe influência de Amorim no Itamaraty”, “Lula coloca o Brasil como cúmplice do terrorismo do Hamas” e “Conheça o arsenal que Israel pode usar contra terroristas do Hamas numa invasão terrestre”.
O jornalismo de adjetivação também serve como estratégia/chantagem para tentar induzir a esquerda para apoiar a campanha pró-Israel da mídia brasileira. Nessa lógica, os setores progressistas deveriam abandonar a Causa Palestina (historicamente, uma de suas principais pautas), haja vista que o Hamas é “terrorista”, “extremista”, “radical” e “fanático”. Esta manobra discursiva fica bem clara em dois títulos de artigos publicados no Estado de São Paulo: “Ao silenciar sobre o Hamas, parte da esquerda esquece o compromisso com a democracia” e “Apoio ao ‘terrorismo do bem’ do Hamas e censura a Israel mostram indignação seletiva da esquerda”.
Trata-se do mesmo modus operandi lançado em agosto de 2017 pela Folha de São Paulo, ao rotular Maduro como “ditador”. Assim, parte da esquerda, pautada pelo jornalismo de adjetivação, deixou de denunciar as sanções impostas pelos Estados Unidos à Venezuela, pois (supostamente) isso significaria “apoiar uma ditadura”.
Mas, na propaganda de guerra pró-Israel da imprensa brasileira, não bastam adjetivações; se for para representar negativamente o Hamas, fake news também são bem-vindas. Vale tudo! Noticiar que bebes israelenses foram degolados pelo Hamas, insinuar que os “terroristas” do Hamas prenderam crianças em jaulas ou associar o PT ao Hamas, como fez Mônica Waldvogel (lembrando que, nos discursos midiáticos, o grupo palestino é “terrorista”).
Por sua vez, Jorge Pontual, em comentário no programa “Em Pauta”, da GloboNews, foi mais explícito: se posicionou contra o cessar fogo entre Hamas e Israel e defendeu a continuidade do massacre do exército sionista na Faixa de Gaza e o consequente extermínio do povo palestino.
Diante dessa realidade, em relação à divulgação de notícias sobre a geopolítica palestina, resulta difícil ver diferenças entre um noticiário da Rede Globo, uma matéria da Folha de São Paulo, um editorial do Estadão, uma página da Veja ou um grupo de WhatsApp bolsonarista. As manipulações, falsificações e conservadorismos são os mesmos; só variam a escala de alcance.
Enquanto a BBC não se refere ao Hamas como “terrorista”, nos Estados Unidos, conforme já denunciou Edward Said, produtores de televisão consultam o cônsul de Israel sobre a possível participação de pró-palestinos em seus programas e, em Israel, alguns jornais produzem editoriais com sérias críticas ao primeiro-ministro Benjamin Netanyahu; no Brasil, estas consultas não são necessárias e tais linhas editoriais são inexistentes.
Os responsáveis pelos noticiários de nossa imprensa hegemônica insistem em chamar os integrantes do Hamas de “terroristas”, não precisam de influências externas para censurar vozes a favor da Palestina; tampouco vão produzir qualquer tipo de material que possa minimamente se contrapor à Israel. Em suma, a mídia brasileira é mais sionista do que suas congêneres britânica, estadunidense e israelense.
* Francisco Fernandes Ladeira é doutorando em Geografia pela Unicamp. Autor de catorze livros, entre eles “A ideologia dos noticiários internacionais” (Editora CRV)