Recentemente, por ser um crime de ação pública, cabendo a qualquer operador do Direito formular opinião, a imprensa piauiense noticiou a condenação de um advogado por ter chamado um delegado da Polícia Civil do Piauí de "babaca" no cumprimento de uma diligência de busca e apreensão contra o causídico.
O col. Superior Tribunal de Justiça (STJ) já pacificou o entendimento de que não se caracteriza o desacato quando houver exaltação de ânimos com ofensas. Por ser um crime doloso, não pode ser confundido com crime contra a honra.
Segundo o ministro Luiz Vicente Cernicchiaro, desacato exige um elemento subjetivo voltado para a desconsideração. Portanto, não se confunde com vocabulário grosseiro, palavra mal-educada, destemperada, proferida em momento de exaltação. A grosseria pessoal "babaca" é, sim, incompatível com o dolo exigido para a tipificação do crime de desacato.
O ministro Nilson Naves apontou a dificuldade de se encontrar um equilíbrio entre desacato e ofensa à dignidade e ao decoro. O magistrado se utilizou da frase atribuída ao francês Montaigne para justificar o emprego do mau uso das palavras em determinadas situações, "verbis": "A palavra é metade de quem a pronuncia e metade de quem a escuta".
No caso, salvo melhor juízo, ao que parece, houve uma reação indignada do advogado. Se com razão ou não isso não seria - como não será - motivo para justificar o crime de desacato. No mínimo, um crime contra a honra da autoridade.
Para a caracterização do desacato não basta a enunciação de palavras ofensivas proferidas em momento de exaltação. Foi com tal fundamento que a 8ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região confirmou sentença que inocentou um denunciado por desacato, que proferiu palavras como ‘‘fascista’’ e ‘‘comunista’’ contra um perito oficial em serviço.
O juiz federal julgou improcedente a denúncia para absolver o réu. E lembrou a ausência de, efetivamente, menosprezar a função pública, o que retira o chamado ‘‘dolo específico’’ da manifestação. Ou seja, o réu teve apenas uma ‘‘reação explosiva’’ contra o perito e não contra a Administração Pública.
Com efeito, chamar um delegado de "babaca" que estava cumprindo uma função pública relevante foi, sim, tom exagerado, desproporcional e destemperado do advogado. Porém, sem a caracterização do dolo específico exigido para configurar crime de desacato, que é contra a Administração Pública e não contra o servidor.
No julgamento da ADPF 496 a Suprema Corte entendeu que o tipo penal do art. 331, do Código Penal, deve ser interpretado restritivamente. Justamente para evitar a aplicação de punições injustas e desarrazoadas. (...) “não basta, ademais, que o funcionário se veja ofendido em sua honra. Não há crime se a ofensa não tiver relação com o exercício da função. É preciso um menosprezo da própria função pública exercida pelo agente. E, mais, é necessário que o ato perturbe ou obstrua a execução das funções do funcionário público”.
Portanto, o ato de xingar funcionário público não caracteriza crime de desacato. Dada a ausência de dolo específico para denegrir ou menosprezar a ação da Administração Pública. Assim, não se vislumbra no xingamento "babaca" uma conduta com "animus" para rebaixar o conceito ou a ação do poder estatal, elemento imprescindível para a caracterização do desacato.
Ademais, é forçoso dizer que o crime de desacato não é contra o funcionário público. Mas, sobretudo, contra o exercício da Administração. A propósito, o ministro Luís Roberto Barroso (STF) lembrou que o desacato está previsto no capítulo dos crimes praticados por particular contra a Administração Pública. Significa dizer que o bem jurídico diretamente tutelado não é a honra pessoal do funcionário, mas a própria Administração Pública.
“Os agentes públicos em geral estão mais expostos ao escrutínio e à crítica dos cidadãos, devendo demonstrar maior tolerância à reprovação e à insatisfação, sobretudo em situações em que se verifica uma tensão entre o agente público e o particular”, ressaltou o ministro Barroso.
Via de regra, xingar um servidor público pode, em tese, caracterizar crime de injúria. Não de desacato, claro! Porque o xingamento é pessoal, personalíssimo e não diretamente contra a ação da Administração Pública. A personalização diz respeito à dignidade (moral) ou ao decoro da vítima-ofendida (atributos de ordem física ou intelectual). Não à imagem do poder estatal. Convém lembrar que os chamados "crimes da palavra" - de natureza estritamente privada - não se confundem com os demais do Código Penal brasileiro, de natureza pública incondicionada ou condicionada, dependendo do fato ilícito.