A secretaria voltada para cuidar das regiões periféricas é, no entanto, uma novidade que, segundo Simões, atende a demandas dos movimentos sociais. Uma estrutura que, na visão do secretário, une o pensamento urbanístico à vivência dos territórios que ficam às margens das grandes cidades.
“É uma confluência dessas formulações de urbanistas, arquitetos, com os interesses dos movimentos que atuam nas periferias. O [presidente] Lula atende essa demanda e cria essa secretaria”, resume.
Como funções, a secretaria deve tratar da urbanização das favelas e da prevenção de riscos, como enchentes e deslizamentos de terra. Questões que Simões pretende abordar tanto de forma emergencial, como estratégica, de longo prazo. “O que a gente tem observado nesses anos todos é que os territórios periféricos ficaram abandonados e estão desmobilizados”, avalia.
Para ele, a falta de moradia digna, que afeta milhões de famílias no país, está diretamente ligada ao histórico escravagista do Brasil.
“A gente costuma dizer que o 13 de maio [assinatura da Lei Áurea] veio e o 14 de maio é um dia que nunca acabou para a população negra. Ficamos jogados sem direitos básicos, proibidos de participar politicamente do país, proibidos de exercer direitos, proibidos de sermos cidadãos. Essa situação nunca foi resolvida”, diz.
No movimento por moradia, Simões ajudou a expandir a atuação do MTST para além de São Paulo. “Hoje, o movimento está atuante em 14 estados”, enfatiza sobre o processo que coordenou. Também se formou em Ciências Sociais pela Universidade Estadual Paulista e fez mestrado na Universidade Federal do Rio de Janeiro, com uma dissertação em que analisa o processo de urbanização do país a partir da obra do dramaturgo Plínio Marcos.
Agora, como integrante do governo federal, espera estabelecer uma relação construtiva com os movimentos sociais. “Há uma convicção profunda de que estamos no caminho certo com o movimento social tendo voz, e o governo afinado com as pautas do movimento social”, afirma.
Simões espera, inclusive, que parte das soluções para os problemas das favelas e comunidades periféricas venha dos próprios territórios. “Tem muita gente que enxerga a periferia como se fosse um território de abandono, de ausência. Mas, a periferia é também um território de muita potência, de muita dinâmica”, diz.
Confira os principais trechos da entrevista concedida pelo secretário à Agência Brasil:
Agência Brasil: Como você começou a militar no Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST)? Conte um pouco sobre como foi essa atuação.
Guilherme Simões: Eu atuo no MTST desde 2005. Conheci
esse movimento em uma ocupação na região sul de São Paulo, que é a
região onde uma parte da minha família vive. Desde então, passei a atuar
no movimento, a contribuir internamente na ocupação, a ajudar, e a
partir de então não saí mais do movimento. Desde então, eu ajudei a
organizar novas ocupações e também contribuí no processo de
nacionalização do movimento. Hoje, o movimento está atuante em 14
estados e eu tive, durante alguns anos, a tarefa interna de coordenar
esse processo. A minha trajetória no movimento está relacionada
diretamente à minha origem social. Sou nascido no bairro do Grajaú, em
São Paulo. Vivo lá até hoje.
Agência Brasil: O que fez com que você se aproximasse do movimento de luta por moradia?
Guilherme Simões: Desde sempre, como alguém que veio da
periferia, não de ouvi falar, mas de viver vários dos problemas,
inclusive o déficit habitacional, sempre me incomodei. Sempre, de alguma
forma, me indignei com a situação social do país. Vim de uma família
muito pobre e tive muita dificuldade para sobreviver mesmo, para ter
comida na mesa, para morar. E, isso, para além de ser um problema real,
concreto, sempre me mobilizou muito. Sempre mexeu muito comigo essa
questão da falta de moradia, falta de emprego, falta de dignidade de
maneira geral. Então, quando eu vi que tinha uma ocupação em uma região
que eu já conhecia, fui lá visitar para prestar solidariedade e de
alguma forma tentar ajudar aquelas pessoas que estavam em uma situação
que eu já tinha passado algo parecido. Foi isso que me mobilizou para
atuar no movimento.
Agência Brasil: Você também
atuou em um movimento com recorte racial, o Raiz da Liberdade. Como
você vê que as duas pautas – da moradia e da questão racial – estão
interligadas?
Guilherme Simões: Se a gente fizer uma digressão
histórica, a gente vai ver que no pós-abolição [da escravidão] no Brasil
a população negra foi jogada às ruas. A gente costuma dizer que o 13 de
Maio [assinatura da Lei Áurea] veio e o 14 de maio é um dia que nunca
acabou para a população negra. Ficamos jogados sem direitos básicos,
proibidos de participar politicamente do país, proibidos de exercer
direitos, proibidos de sermos cidadãos. Essa situação nunca foi
resolvida. E a gente chega no século 21 com um déficit habitacional
enorme no país. Quando a gente vai observar mais de perto esse déficit, a
gente vai entender que ele está nas periferias, que é justamente onde a
população preta do país foi parar nesses anos de abandono, de
subcidadania. Está interligado na medida em que a população negra é a
que mais precisa de moradia. Assim como a população negra população está
desassistida de direitos básicos e é a mais vitimada pela violência do
Estado. Então, a luta por moradia no nosso país, sem dúvida, tem um viés
antirracista.
Agência Brasil: A
Secretaria de Territórios Periféricos é uma estrutura completamente nova
no governo. O que o você pensa em fazer daqui para frente ou já está
fazendo?
Guilherme Simões: A secretaria é uma estrutura nova em
que foi atendido um pedido histórico dos movimentos sociais que atuam
nas periferias e daqueles que atuam formulando a política urbana do país
desde a criação do Ministério das Cidades. Então, é uma confluência
dessas formulações de urbanistas, arquitetos, com os interesses dos
movimentos que atuam nas periferias. O [presidente] Lula atende essa
demanda e cria essa secretaria.
Qual o objetivo da secretaria? É buscar fazer com que a periferia esteja no centro da política urbana do nosso país. Tendo em vista que a gente tem milhões de pessoas vivendo nas periferias, em condições precárias – para não dizer outra coisa –, é fundamental que o país tenha políticas específicas, destine investimentos a partir dessa vulnerabilidade.
A secretaria tem duas atribuições: a urbanização de favelas e de assentamentos precários e também a gestão e prevenção de riscos e desastres, que está diretamente ligada à Secretaria de Defesa Civil. São duas coisas que se relacionam, mas que têm equipes próprias para tratar dos temas.
Então, tem três coisas que estamos pensando: retomar uma coisa que estava abandonada no país nesses últimos anos, que são justamente as obras de urbanização que ficaram paradas ou, com investimentos a conta-gotas, ficaram dependendo de emenda parlamentar esse tempo todo. Nós estamos tomando parte nesse processo, a equipe que estamos formando, e fazendo um planejamento de retomada. Essa é uma questão essencial tanto na urbanização quanto na gestão de riscos. O país estava abandonado, desgovernado. Esse é um desafio do ontem.
O segundo desafio é a gente construir uma estratégia que seja de longo prazo, é voltar a ter um plano, um projeto para as periferias do ponto de vista da urbanização e da prevenção. A gente está vivendo novamente o período de chuvas no Sudeste, que é um período muito difícil para muita gente, com enchente, deslizamento. É um período de muitas tragédias. Nós precisamos ter, agora, um plano de emergência e um plano para frente, que consiga ter uma estratégia de inclusão e participação social nas periferias. O que a gente tem observado nesses anos todos é que os territórios periféricos ficaram abandonados e estão desmobilizados.
Um terceiro ponto fundamental para a nossa secretaria vai ser conseguir articular os territórios periféricos em torno do que esses territórios já constroem autonomamente.
Tem muita gente que enxerga a periferia como se fosse um território de abandono, de ausência. Mas, a periferia é também um território de muita potência, de muita dinâmica.
Tem grupos culturais, coletivos políticos, movimentos sociais e associações comunitárias. A periferia auto-organiza soluções que muitas vezes não têm nenhum estímulo por parte do Estado. Esse é também um desafio para nós, como construir uma política urbana a partir da participação.
Agência Brasil: Como você vê que o movimento social e o pensamento do urbanismo podem se ajudar? Como é possível produzir política juntos?
Guilherme Simões: Acho que historicamente há uma
relação de muita convergência entre aqueles que formulam a política
urbana no nosso país. Felizmente existe um grupo muito diverso, mais
progressista, que pensa política urbana. Esse grupo que constituiu o
Ministério das Cidades 20 anos atrás. É com esse grupo que os movimentos
sociais vêm dialogando nesses últimos anos. Se você pensar no Estatuto
das Cidades, na criação de vários desses movimentos urbanos, nós estamos
falando de três ou quatro décadas de diálogo permanente.
Então, eu acho que existe uma simbiose muito importante no país que a gente quer retomar, que foi deixada para trás nos últimos seis anos. A Secretaria das Periferias é a expressão dessa simbiose e precisa, para dar certo, ter a contribuição tanto de quem está formulando, quanto de quem está vivenciando o problema no território. Eu sou muito otimista sobre essa relação.
Agência Brasil: Você vem do
movimento de moradia, os problemas com os quais você vai lidar estão
relacionados à moradia, mas a secretaria não se destina a lidar com
moradia. Como vai funcionar a interface com as áreas do governo que vão
lidar com essa questão específica?
Guilherme Simões: Tem uma relação muito forte a
produção habitacional com o processo de urbanização. Nós vamos ter que
fazer esse esforço. Vou procurar o Secretário Nacional de Habitação. Mas
há um parêntese aqui: o Ministério [das Cidades] está em processo de
formação. Visto que ele está sendo recriado, nós estamos nesse momento
de formação das equipes e das secretarias. Então, tem que ter uma
paciência histórica.
Mas tem que procurar, sim. Já tenho conversado com alguns servidores para entender a relação entre as obras de habitação e de urbanização. Onde que a gente tem que se juntar. Agora, o que está evidente para nós é que o Minha Casa, Minha Vida será uma das prioridades do governo já a partir deste ano. E, sendo um programa do Ministério das Cidades, sem dúvida que os processos de urbanização, as intervenções do ministério nas comunidades, nas periferias, serão necessárias. Não se faz produção habitacional sem urbanização.
Agência Brasil: Você vem do movimento social, mas agora está no governo. Você tem medo das cobranças que podem vir?
Guilherme Simões: Não tenho medo, não. Acho que o
movimento social tem que exercer o papel de movimento social. Nós
passamos seis anos por governos tentando calar os movimentos,
criminalizar os movimentos, tentando tratar os movimentos como caso de
polícia. E, evidentemente, esse novo governo Lula está tratando os
movimentos sociais com o maior respeito. Tratando como se deve tratar
movimentos organizados que estão nos seus territórios de mobilização, de
luta, trazendo as pautas e apontando o que o governo tem que atender.
Os países democráticos têm a relação com a sociedade civil cada vez mais azeitada. É nesse caminho que a gente tem que estar. Não há medo! Há uma convicção profunda de que estamos no caminho certo com o movimento social tendo voz e o governo afinado com as pautas do movimento social.
Agência Brasil: Sobre o orçamento, existem recursos disponíveis para fazer os projetos emergenciais de redução de riscos nas periferias?
Guilherme Simões: A gente está tomando parte da
situação, e estamos muito preocupados. A transição, além de organizar um
plano de governo para esse primeiro ano, teve que brigar para que
houvesse uma PEC [Proposta de Emenda Constitucional] para que pudesse
pagar o que o Bolsonaro não tinha empenhado de recursos para este ano.
Ali, ficou claro que todas as áreas, todos ministérios vão sair no
prejuízo, no sentido que estamos pagando uma conta, herdando um legado
terrível, em que certamente o investimento ideal não vai ser possível.
Também por esse esforço que foi feito da transição, da articulação do governo, vamos ter recursos disponíveis para lidar com obras paradas, para fazer o básico. E, ao mesmo tempo, paralelamente a isso, fazer o planejamento estratégico, de longo prazo para os próximos anos. Este ano, o orçamento para as obras de urbanização está em torno de R$ 500 milhões. É um orçamento que parece grande, mas é bastante limitado se pensar em um país como Brasil e as necessidades que existem.
Agência Brasil: O programa
Minha Casa, Minha Vida tinha uma modalidade em que as obras eram
realizadas por entidades da sociedade civil. Podemos pensar em uma linha
parecida também para as obras de gestão de riscos e urbanização?
Guilherme Simões: Essa, sem dúvida, é uma das linhas
que vamos defender, de que formas podemos ter parcerias com entidades
que tenham a capacidade, porque é algo que precisa obedecer determinados
critérios. A ideia não é só que a gente aumente o Minha Casa, Minha
Vida, mas também na nossa secretaria, na urbanização e prevenção de
riscos, para que a gente consiga ajudar as entidades territoriais a
gerir obras e mitigar os problemas nos territórios. Essa é uma coisa que
já estamos determinando para a equipe: como conseguir fazer isso pelo
Fundo de Desenvolvimento Social ou outras formas de executar o
orçamento. Mas com a convicção de que só o governo não vai dar conta dos
desafios.
Agência Brasil: Parceria com o setor privado, com grandes empresas, também são uma opção?
Guilherme Simões: A gente está entendendo ainda o
funcionamento da máquina, o ministério ainda está em processo de
formação. Alguns secretários sequer foram nomeados. A gente está muito
alinhado com o que o presidente Lula e também o ministro [das Cidades]
Jader [Filho] colocam. A partir dessa relação – uma relação hierárquica
–, é que a gente vai agir. E nós precisamos priorizar os territórios
periféricos na política urbana. Se houver entendimento de outros setores
de que isso é uma prioridade e pode haver investimentos públicos, nós
vamos sentar e dialogar de uma forma que não comprometa as instituições e
a relação do governo com os territórios.
Edição: Denise Griesinger